Sei que o
homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher
no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse
Sei que os
enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados
para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor
Sei que
cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os
vestidos cortados
Era um homem
imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu
sangue
Na água
corrente
Era um homem
inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava
para o homem respirar
Há
uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito
tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se
prepara
Para cantar
Ela
está sentada à janela. Sei que nunca
Mais levantará para
abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de
nós pode trazê-la para dentro
Ela é
tão bonita ao relento
Inesgotável
É tão
leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É
um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das
margens
Abriu-se em
ferida a cerca do teu sopro
E deixas vindimar-me quem quer
Que
passe
Até o muro é sombra que não floresce
Enquanto me repetem a
pergunta
Tu me
cultivaste
Tu me deixaste a geada sobrevir
Estranho é o sono que não te devolve.
Como é
estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa
sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E
surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde.
Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo
do
coração.
1
Acordei com
as narinas a sangrar perfume
Como um santo quando acaba de
morrer
E debrucei-me para dentro
Para encontrar o golpe no
sono.
Encontrei uma mulher sentada entre os pássaros
Que quebrava
vasilhas de barro.
Disse-lhe: bebe do meu sangue.
Ela rasgou-me as
veias com cacos
E deu de beber aos pássaros.
2
Acordei
também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos
seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulhas no
coração
Ela respondeu: para que aprendam a direcção do
voo.
3
Ela pôs-me o
dedal sobre os olhos
Um vaso pequenino com que me ministrou o
sono
Apagou em mim os instintos da caça.
Estou ferido nas narinas
e nos pulmões,
Digo-lhe: sufoco.
Ela ordenou que os pássaros
batessem as asas
E fez circular o ar.
4
Acordei
dentro do poço
Do ar
E soube que podia respirar dentro da
água
Porque a mulher estava cercada de peixes.
Disse-lhe: porque
quebras aquários contra os joelhos?
Ela mastigava e não me
respondeu,
Estendeu a mão e deu-me um vidro a provar
5
Trinquei o
vidro e ouvi o coração da mulher estalar:
A mulher era uma ilha de
todos os lados
Na sua força de um redemoinho parado
6
Ela sorveu-me
o sangue, curou-me a boca,
Espetou-me um anzol na língua e
puxou-me
As palavras
Foi então que pensei que ia
morrer
Afogado.
7
Acordei
dentro desse pensamento como um homem salvo
Com a boca cheia de
búzios em forma de palavras.
Soube que era possível respirar
dentro das palavras
Porque vi a mulher pôr as mãos sobre os
ouvidos.
Ela estava no meu pensamento e tinha um pequeno
tear.
8
E eu disse à
mulher: destece-me
Até que alguma coisa me pense para dentro
Como
se alguém me chamasse
Como se badalasse um sino ao redor
Dentro de
mim.
A mulher pôs-se à escuta: perdi o fio — disse —
Dos teus
novelos.
9
Assemelhei-me
a um xilofone de silêncio
A um estrondo muito forte que só se ouvia
bem em silêncio.
Gritei: então canta!
Ela pegou a minha
tristeza e começou a dobrar.
10
Debrucei-me
sobre a meada estreita, o estreito poço
E disse: é agora que vou
descer.
Acordei no meio da descida e pensei:
Ah, quem dera a
mulher lançasse a sua trança
A prumo.
11
A mulher
lançou a sua mão
Eu estava na palma da mão
Eu era uma linha que se
apagava
Uma linha que ninguém sabia ler.
Eu disse à mulher: Ah,
fecha a mão
Para me guardares
12
A mulher
guardou-me no útero
E eu vi quanta morte existe ao redor de quem
nasce.
Perguntei à mulher: porque estás de luto?
Ela abriu o
regaço e vi como nas fotografias do holocausto
Exatamente como nas
manhãs depois dos terremotos
Cadáveres e cadáveres de peixes e
pássaros
13
Acordei com
os olhos comidos como um corpo depois de sepultado
E gritei para fora
do poço: existe alguém desse lado?
Eu estava no fundo, eu estava
morto e vi
Que os peixes e os pássaros
Ressuscitavam.
Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede
de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o
candeeiro
Branco das palavras com as mãos
Como a paveia
atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E
escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o
pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas
mãos
Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa
terrestre, tombando.
Digo:
Imaginai
Coeleth (Ecl 12,
1-7)
Lembra-se do teu Criador nos dias da mocidade
A tua única herança
para os dias da desgraça.
Cava fundo o coração para a
lembrança
Antes que digas não tenho mais prazer
Antes que a noite
seja noite e não vejas mais o sol nem as estrelas nem os filhos
Antes
que voltem as nuvens depois da chuva como a viuvez
Antes do dia em
que as mulheres, uma a uma, pararem de moer,
Quando a escuridão cair
sobre os que olham pela janela
Quando se fecha a porta da rua e o
ruído não diminui
Quando se acorda com o canto do pássaro e as
palavras desaparecem
Quando a altura se assemelha aos sustos que se
apanham no caminho
Quando a amendoeira está em flor e o gafanhoto se
torna pesado
Quando o tempero perde o sabor
Antes que a
tua única herança seja a lembrança
Antes que o fio de prata se rompa
e a roldana rebente no poço
Antes de tudo isto
Põe uma escada e
sobe ao cimo do que vês
Busquemos apenas
As palavras repetidas
As gaivotas
mais altas
Mais
perdidas
(Poesia.
Famalicão, Quasi Edições, 2003)
Daniel Faria
nasceu em 10 de abril de 1971, em Baltar, Paredes, Portugal.
Licenciou-se
em Teologia na Universidade Católica Portuguesa e em Estudos Portugueses
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Recebeu
vários prêmios literários relativos a inéditos de poesia e conto.
Algumas publicações: Oxálida (Porto, Associação dos
Estudantes da Faculdade de Teologia do Porto, 1992), A Casa dos
Ceifeiros (Porto, Associação dos Estudantes da Faculdade de
Teologia do Porto, 1993), Explicação das árvores e de outros
animais (Porto, Fundação Manuel Leão, Colecção Fogo das
Figuras, 1, 1998), Homens que são como lugares mal situados
(Porto, Fundação Manuel Leão, Colecção Fogo das Figuras, 2,
1998) e o póstumo Dos Líquidos (Porto, Fundação Manuel
Leão, Colecção Fogo das Figuras, 3, 2000).
Colaborou nas
revistas Atrium, Humanística e Teologia,
Via Spiritus e Limiar.
Quando
faleceu, em 9 de Junho de 1999, era noviço no Mosteiro de
Singeverga.
A sua obra
poética está reunida em Poesia (Famalicão, Quasi
Edições, 2003), com prefácio e edição de Vera Vouga.