o poeta
"Escrevo para tornar-me eterno, ao
mesmo
tempo em que me entrego à
morte".
Eu aos 15-16 anos
é outono — sem lamento — na cabeça do
poeta.
as folhas caem, são esturricadas de geada.
o caderno
de estudante não me avexa mais.
vou jogá-lo fora mesmo assim.
já é tempo de novo.
engraçado quando eu acentuava,
compulsivamente,
o pronome tu.
talvez uma faca em
você,
uma flechada diagonal no assombro de viver. sei lá.
aprendi outros nomes e jeitos de
enunciar,
novas
oitavas:
imensidade.
densidão.
arrebóis.
densifloro,
soube
com os girassóis:
não há beleza alguma
em estar morto.
a glória não passa de uma fotografia
ou de um
poema
espantalho
"Meus mares interiores ficaram sem
praias".
Federico García Lorca
o vento cardíaco
carrega um homem sem
voz
que não sabe se encostar
e morrer.
as ventoinhas, a
caminho
de serem pedras,
tremem como espinhas de peixe
não tremem
e jazem malferidas
sem sofrer. ai!
só a
respiração do trigo
é minha amiga.
o azul cerúleo, que
transporta
homens e pássaros, a mim ameaça
— é quando não
durmo.
sempre que gepetos à relha
mexem a terra,
conto
os minutos
para a cova que me abrem. ai!
essas coisas que
vejo sem retinas
existem. não há dúvida!
meus olhos são
ossos da cegueira,
caminhos pelo escuro, moscardos
cegos.
vou abandoná-los, de todo em todo
não me
estiolaram.
serei mais lúcido que o sol ao meio-dia.
ó noite, por terrível que sejas,
no plástico
preto
com que asfixias tudo
há furos de estrelas!
moro no plantio,
próximo ao galpão, à
colheitadeira.
moram em mim de passagem
como num hotel
barato.
fui feito para o terror,
mas não pude senão me
assustar
(não dou sombra ou frutos ou coroas.
não sou dafne
em sua grande tristeza vegetal).
dois corações se
debatem
em meu peito:
uma maçã cheia de
larvas,
mordidas, merda de gralha;
outro que é ninho e fuga
e
salsugem do mar nunca visto.
penso através do susto, do
mofo,
do amor, da inveja.
meu sorriso de barbante
é uma
cicatriz perplexa.
não saio andando porque me
faltam
músculos.
meu movimento, às abelhas do sol,
é
parar sempre,
estacado sem o céu e o chão.
e no entanto,
caso não me traia
e me devolva a solidão,
migro como meus
inquilinos.
tenho paina e feno nas carnes.
meu sangue é a
água quando chove.
será que estou vivo?
minha voz dobrará
horizontes?
deus, dai-me raízes!
um dia terei raízes como
que asas
epifania
deus criou o mundo em seis dias.
no
sétimo
o Homem criou deus.
talvez ele exista
a qualquer momento,
neste agora
talvez, adeus,
morra nossa única morte
manuel,
não só crianças, passarinhos
e andarilhos
(cães vira-latas incluídos)
têm o dom de ser
poesia.
ademais os palhaços, os funâmbulos,
as
bailarinas...
em minha infância
fugirei sempre com o
circo
ademar
moletta
"Incompetente para as lágrimas,
choro
tinta"
tua última imagem foi cor-de-púrpura,
ouvi
dizer,
a aurora
no instante mais terrível.
nunca
compreendemos o fim
das coisas.
o bom coração funcionava mal.
imagino, em
disparate, o músculo
parado, pairando
para observar
estrelas (é possível?),
a vida:
égua xucra,
mal-resolvida,
que passa sensível, em pêlo,
sem saber pra
quê...
nem sei o que dizer!
escrevo no fervor do
sangue,
no de repente das notícias trágicas,
como a morte
que mata
sem cortes marciais, sem trombetas,
sem tiros de
escopeta,
tribunais de apelação, revisões ortográficas,
sem ouvidos
para nosso grito na calada.
atuamos em campos diversos:
o mafioso
(como chamavas carinhoso à helô, e já não te lembras)
e a
autoridade.
mas estávamos encharcados da mesma dor
e
esperança.
apanhei, odiei sem excetos tua raça
até
estar de posse daquele teu riso,
sem farda, nu de escárnio...
e xingávamos o juiz no brasil-argentina
e,
entre sussurros, apertamos as mãos...
ao vê-lo chorar,
pensei na montanha
onde o desespero acha um berço,
ou
num escolho debruçado
sobre si mesmo
para aninhar um peixe
que adoeceu...
a chuva lá fora tem gosto de uréia.
algo deu
errado
e se arrepende.
olhar teu corpo inerte
me revolta:
onde estão os olhos que brilhavam, à noite,
sob as
pálpebras?
onde tua boina de lã, último presente
da mulher
amada?
esta grande árvore tombada
apenas finge ser
tua ausência.
o que fazer agora?
me ensina, coronel!
serás, talvez,
o último a quem bato
continência
(18/06/2005)
anaforia
"A tarde talvez fosse
azul"
Drummond
porque somos feitos de dia-a-dia,
e não de
metafísicas,
vinicius de moraes se tornou melhor
poeta.
porque estamos evisceradamente sós
e por amarmos
tanto as pernas
e as bocas entreabertas,
dançamos ao vento,
alucinados e comovidos
como árvores que à noite se
deitassem
dias
o galo grita antes da aurora,
urge não morrer.
mas é o bem-te-vi quem delata
a manhã, nos
entrega
a todos.
a cigarra apita o fim do expediente
(sapos
acendem seus cigarros e tragam).
sozinha, uma aranha ébria
tece os grilos da
noite, música
ao ensejo do veneno.
o escuro se
intoxica,
enquanto estrelas
quase vencerão o dia
mais uma vez,
a serpente sem vértebras
está
enrodilhada
no abismo vocal, coletivo,
de nosso único
galo.
é noite,
não viemos a lume.
azul-violáceo,
o grito do galo
(como dança
flamenca)
não preparou a aurora
pequena
saudação às rosas
I
a pequena saudação às rosas que,
em
propriedade medicamentosa,
cânforas seriam, ou uma
quintessência
almiscarada...
não.
um botão abre como a jaula:
há dor nesta
liberdade.
o cheiro pútrido-perfumado
dos que ainda
enganam
e são enganados,
sabem?
aquele olhar de jasmim que marca
na página um
galanteio de drummond,
ou o cipó amarrado aos cabelos.
não se esqueçam dos espinhos,
monstros de
olhos verdes,
a indicar a febre-paixão.
o que é massa de sonho
entre os pés e o
chão,
é também o bafo, o sarro dos dentes,
o inquieto
tesão...
a despedida.
as grandes paixões
escorrem entrededos feito
água
e não constroem casas,
não geram filhos legítimos,
não acordam
seguras,
não pedem a mão
II
como a palavra precisa
para a imprecisão do
que sente?
como, no íris acérrimo,
na chama doente
tal o céu,
traduzir
o beijo de língua
sem
línguas?
como?
III
a paixão é uma hipermetropia
que senta nos
óculos
juntos
somos maiores que o mundo
que as
circunstâncias todas
juntas
maiores que a cama, a casa
a cidade
que
nossos corpos nus
no escuro
maiores que nossos filhos
futuros
juntos
somos maiores que nossa
despedida
amanhã
a menina
atravessa a rua
está
gravado numa árvore
ou
leio em bula de remédio
ou
ignoro no aviso do veneno:
é
tipo "um raio
partindo
meu céu em dois
e
me presenteando com meu
corpo*".
mas
você não me sabe.
é
como o sol que nascesse em seus lábios
e
se pusesse em suas coxas
o
mundo todo
encerrado num beijo
na
volta imensa pra chegar
onde
você está
toda
paisagem
no
jogo da tentativa e erro.
você
—
a
grife sem roupas
o
arabesco
a
tatuagem no osso
uma
espécie de murro
outra
mordida
na maçã mordida —
você
com
botas sete-léguas
atravessando
a vida
tipo
o ônibus em que se vai dentro
à
noite? a rua onde se anda?
a
cidade em que se perde?
você
passa, pássaro líquido
e
transborda ao que vejo
sozinha
no coração de tudo quanto vejo
você
passa...
mas
e se eu —
do
alento certo na tristeza
do
chão firme às quimeras —
lhe
dissesse? "hei, fulana, toda mulher é
pessoa
difícil e menina fácil!
hei
fulana, venha cá!
se
importa se, 'em lugar do luxo
de
um vestido parisiense,
eu
te cobrir apenas
com
a fumaça de meu cigarro'**?"
ah...
se você soubesse
que
logo ali, no canto escuro
se
você viesse
lhe
daria a mais erigida amizade...
e
meu desejo —
a
língua passeia, estúpida —
se
você apenas soubesse...
*Nedjma
**
Maiakovski
*
a régua de ponto mede o imenso
sem contar a sombra
um tijolo é
templo