Conceito
Para Orávio de Campos
Sou o que representa
a febre, a dor
a expressão exata
a corda que desata
todos os nós acorrentados
aos conceitos do que
querem que a poesia seja.
Canto a canção ferida
daquilo que é doído
tenho olhos de vidros partidos
e a imensidão de compor.
Não me estabeleço
amanheço, entardeço, anoiteço
na forma mais concreta.
Evangelho segundo a vossa
santa ignorância
Só Jesus Silva
porque pobre
enche o saco
de qualquer
cão pastor.
Pivete
Vivo
do cheiro dessa cola.
Ando
na cola desse cheiro.
Quarto de hotel
Na solidão dessa insônia
não conto carneirinhos:
conto estrelas
uma a uma
expostas feito um quadro
na moldura da janela.
Pecado original
Caso case nossos corpos úmidos
em que se faça amor de maneira tal
e possam meus dedos por estarem virgens
penetrar tua vagina ainda menina
e subir colina a buscar teus seios
encontrar calor nessa tua boca
chegarei ao céu pelo caminho natural
ao cometer esse pecado original.
Recado
Tá legal, baby
a gente não se vê
a gente não se toca
a gente não se fala.
— Nada tão importante assim —
Mas vê se se toca:
a gente tem mais
é que se olhar
é que se tocar
é que se falar.
Se não for dessa maneira
seremos iguais a todos eles:
tão comuns e sem poesia.
Concerto para lá maior
(entre as nuvens)
Meus amigos estão todos indo embora
e eu, por enquanto
vou ficando por aqui
com aquela sensação de vazio
preenchendo-me os poros
as artérias, a alma, os versos.
Revejo catedrais que outrora
pensei um dia, edificar
entanto, o tempo escorre pelas mãos
entra pelos ralos
sem que ao menos, possa segurá-lo.
Alguns recitam versos lá
outros cantam entre nuvens
e cá, ficamos nós, desatando nós
nessa insegurança tão imperfeita.
Meus amigos estão todos indo embora
embora seja verdade, devo aceitar
aguardando que um dia
numa viagem menor
eu possa ver estrelas, constelações
e desvendar enfim, os mistérios dessa vida.
A palavra
É necessário cantar
quando a palavra nos soa
poética
triste e sem limitações
feito sussurros de um poeta
e na claridade do verso
habita o sol
que brilha e cega
quando a rima
machuca.
E além da vida
sobrevive a palavra
mas o poeta
acaba
Questão de Linguagem
Todos os dias buteco
(pretérito mais que perfeito
do verbo embebedar)
sento à mesa
e entre um substantivo e outro
o tampo passa
calmo sob as estrelas.
Entre os dedos bêbedos
o poema surge tonto
embriagado de palavras
mas, despercebida de outros bêbedos
que discutem futebol
na mesa ao lado.
O poema é isso:
descompromissado
por isso surge lúcido
ou alcoolizado
(depende das circunstâncias)
sendo impresso em papéis
e distribuído entre tantos
que nem atentos percebem
a fragilidade do poeta.
Por isso, todos os dias poeto
(presente do subjuntivo
do verbo sofrer)
e entre um copo e outro
faço versos livres
que germinarão sementes silábicas
e serão plantadas
em papéis comuns
para que poucos apreciem:
— Assim é a sensibilidade!
Infância
Quando garoto
em todos os natais, Irene
— babá de minha infância —
presenteava-me com um cartão
bem bonito.
E os meses se passavam
um, dois, três... doze
e este menino aguardava ansioso
pelo melhor presente
que nada mais era
que meras palavras escritas
pela minha babá, Irene.
Havia o ano novo
dia de aniversário
dias das crianças
mas dia nenhum era assim
tão esperado
como o dia de Natal.
Irene não escrevera
naquele ano.
Dias depois soube
que Irene falecera
por causa d'uma diabete.
Bem que eu dissera:
Como era doce a minha Irene!
O piano que mamãe tocava
Venderam o piano que mamãe tocava
a sala hoje, encontra-se vazia.
No tempo do tempo do tempo
havia no canto de nossa velha casa
da Rua Doutor Mattos
além do criado mudo e móveis mais
a canção e a vida, na viagem
do piano que mamãe tocava.
— Quase tudo tem seu preço.
O piano que mamãe tocava
Não tinha preço: tinha valor —
A tristeza e a alegria
na história dessa senhora
e o toque sutil de suas mãos
tão calejadas e sofridas
faziam todas as canções, belas.
Hoje, o canto encontra-se vazio
mas a nostalgia embala a criança
que amadureceu criança
nas lembranças daquele tempo.
Acordaram todos os sonhos
a velha senhora se foi
e a canção desencantou-se
no dia em que venderam
o piano que mamãe tocava.
(imagens ©jack hollingsworth)